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A arquitetura das palafitas sempre nos contou uma história de resistência. Presentes em diversas partes do mundo — das ribeiras amazônicas às margens do sudeste asiático —, essas construções se erguem sobre estacas longas, muitas vezes em madeira ou concreto, protegendo as casas do contato direto com a água. Flutuando, mas firmes. Adaptadas, mas sólidas. São moradias que nos ensinam sobre como viver em movimento, sem perder o chão.
Na Monterraro, essa metáfora ganha forma concreta (e sensível) na coleção Palafita. Um conjunto de esculturas de mesa que desafia o olhar e convida ao toque. Cada peça parece suspensa, levemente deslocada da terra, equilibrada em pés finos, como se resistisse à gravidade por pura escolha estética. Mas há mais sob a superfície.
Essa coleção nasce de um processo interno de reconstrução. Após o lançamento da escultura Um n(ovo) dia, que marcou um recomeço no estúdio, a série Palafita estende esse gesto: ela firma estacas sobre novos territórios. As peças celebram um tempo de amadurecimento criativo e renovação artística — e essa transição não é apenas formal, mas também material.

Os volumes arredondados, ora rugosos, ora polidos, combinam matérias-primas que carregam memória e identidade: a madeira, símbolo do fazer manual; a casca de ovo, com sua delicadeza poética; a erva-mate e o café, tão presentes nas culturas do Sul e do Brasil; e o latão, ponto de luz que brilha sutilmente, como promessa e esperança. Cada elemento, em sua textura e cor, compõe um léxico sensorial que convida à contemplação.
Essa inspiração, no entanto, não é apenas simbólica. Ela se ancora em uma arquitetura que é, por si só, uma aula de adaptação.
Palafitas no Brasil: entre engenhosidade e ancestralidade
No Brasil, as palafitas são especialmente comuns nas regiões Norte e Nordeste, onde ocupam áreas ribeirinhas e terrenos sujeitos a enchentes. Somente na comunidade da Vila da Barca, em Belém (PA), mais de 7 mil pessoas* vivem em construções assim. Apesar de muitas vezes associadas à vulnerabilidade social, essas estruturas representam uma solução ancestral e engenhosa para habitar o território em harmonia com as águas.
Feitas com os recursos disponíveis, moldadas ao ritmo das marés, essas casas não negam a instabilidade — elas se moldam a ela. São moradias que se tornam parte da paisagem, coexistindo com os fluxos da natureza e com os ciclos da vida. Uma sabedoria construtiva que atravessa o tempo e inspira outros campos, inclusive o da arte e do design.
É com essa mesma lógica de resistência fluida que a Monterraro constrói suas palafitas. Poemas visuais que pairam levemente, mas carregam densidade histórica e afetiva. A organicidade das formas, os materiais que evocam território e memória, e o gesto artesanal presente nas imperfeições remetem ao tempo do fazer com as mãos, à intimidade dos processos e à delicadeza da criação.
Ao mesmo tempo, a coleção oferece uma leitura sofisticada e conceitual. Suas esculturas funcionam como peças-chave em ambientes contemporâneos, agregando textura, presença e narrativa. São elementos que ancoram projetos em ideias potentes, trazendo à tona uma brasilidade sensível e refinada.
Também há, em cada peça, uma dimensão visceral. Um convite à contemplação mais afetiva, onde o cuidado nos detalhes se alia à força simbólica da matéria. Essas esculturas falam sobre firmeza em meio à fluidez, sobre criar beleza mesmo quando o terreno é incerto. E talvez seja justamente nesse equilíbrio entre fragilidade e potência que mora a sua força.
Assim como as construções que lhes dão nome, as palafitas da Monterraro celebram o gesto de adaptação. Mas não apenas como sobrevivência — e sim como escolha estética, como forma de afirmar a sensibilidade no mundo. São esculturas que flutuam, mas não se perdem. São raízes em suspensão.


No fim das contas, talvez seja isso o que a arte mais nos ensina: a erguer nossos mundos possíveis, mesmo quando o terreno parece instável. Com beleza, com presença, com equilíbrio.
*Fonte: Jornal GGN – “Como vivem os moradores de uma das maiores favelas de palafitas do Brasil”, 2021.